REDE DE HORTAS DO BEM COMUM: Uma Experiência Promissora de Aldeia para o Mundo

Atividade de Planejamento da RHBC. Foto: Arquivo RHBC

Entrevistamos o engenheiro Thilo Schmidt, consultor em Gestão Sustentável de Resíduos Sólidos (RHBC), membro cofundador e produtor da Rede de Hortas do Bem Comum. Ele nos trouxe um panorama geral da experiência da RHBC, que se desenvolve na região de Aldeia, município de Camaragibe, área metropolitana do Recife.

Quando nasceu a Rede de Hortas do Bem Comum? Faz quantos anos?

Thilo: A partir dos resultados das eleições de 2018, seguida por uma fase de concepção de alternativas na busca de se organizar localmente em um movimento que reage ao neoliberalismo. Nossa primeira reunião ocorreu em abril de 2019. Temos apenas um ano e meio de funcionamento, ainda nem somos formalizados.

Quais eram as motivações iniciais para se formar uma Rede?

Thilo: Primeiro, unir conceitos de produção agroecológica em quintais produtivos. Pensando nos sítios e jardins cultiváveis e muitas vezes improdutivos da região de Aldeia, que formariam um mosaico de produção orgânica diversificada, sem fins lucrativos, mas comunitários. Ao mesmo tempo, contribuiriam para a preservação ambiental de Aldeia.

Segundo, unir produtores com consumidores, ao nível comunitário e local. Produzir ao nível comunitário, possibilitando trocas, experimentando formas alternativas de economia, com relação direta entre produção e consumo. Ao mesmo tempo, ganhar um pouco de autonomia em relação as prateleiras dos supermercados, dos alimentos industrializados e da agroindústria.

Terceiro, fazer isso dentro dos conceitos da Economia do Bem Comum (EBC), uma forma de economia solidária com contribuições quantificáveis ao bem comum. Um modelo de economia que responde as nossas crises múltiplas, colocando as pessoas no centro das atividades humanas, e não o dinheiro. Conhecer com isso a EBC, de forma prática e praticada.

Finalmente, manter a saúde mental, em grupo, em tempos de ameaças múltiplas. No conjunto, bem no conceito “pensar globalmente, agir localmente”.


O que é a Economia do Bem Comum (EBC)?
No mês de outubro, por ocasião da comemoração dos 10 anos da EBC foram veiculadas dez mensagens que apontavam porque a economia atual está de cabeça pra baixo:
1. Porque o salário anual de alguns altos executivos é superior ao de uma enfermeira em toda sua vida.
2. Porque as grandes corporações pagam menos impostos que as empresas familiares locais.
3. Porque a 30 reais o quilo de carne, não sobra dinheiro para o bem estar animal.
4. Porque a camiseta produzida por mão-de-obra infantil custa menos que a de produção justa.
5. Porque o aumento do PIB não tem nenhuma relação com a nossa qualidade de vida.
6. Porque alimentos de monocultivos são mais baratos do que alimentos da agrobiodiversidade.
7. Porque a obsolescência programada é aceita como uma normalidade.
8. Porque na atualidade, o esgotamento é parte de uma carreira profissional exitosa.
9. Porque para conseguir dinheiro rápido, tem que passar por cima da moral.
10. Porque as empresas éticas e sustentáveis tendem a ser menos competitivas.

Clique aqui para conhecer mais sobre a EBC.


Thilo Schmidt, consultor em Gestão Sustentável de Resíduos Sólidos (RHBC). Foto: Arquivo RHBC

Atualmente quantos integrantes têm a RHBC? Como é composta essa Rede?

Thilo: Algo na faixa de 50 pessoas. A maioria, consumidores solidários e simpatizantes da ideia, e um grupo de 5 a 10 pessoas que são produtores em diferentes escalas. Um núcleo pequeno de organização, sempre precisando de colaboradores.

Em termos quantitativos é possível destacar algum impacto significativo promovido pela RHBC?

Thilo: Antes da pandemia, em uma avaliação de 2019, constatamos que a Rede reunia 7 hortas produtivas com um total de 2.700m2 em áreas disponíveis para hortas (incluindo as áreas com quintal produtivo e sistemas agroflorestais SAF), mais 3 áreas de mata com possibilidade de manejo.

Em outubro, tivemos a adesão de mais dois parceiros da Rede, produtores de cogumelos com aproximadamente 5 hectares, e um terceiro produtor de cogumelos, hortaliças, galinhas, com aproximadamente 15 ha, ambos com terrenos localizados próximo ao km 28 da Estrada de Aldeia.

Em novembro, contamos com a parceria de Jaqueline, agricultora familiar orgânica de Glória de Goitá, que vende os seus produtos no km 10 da Estrada de Aldeia, complementando a feira da Rede com produtos que não são produzidos nas hortas, com venda direta na nossa feira sem acréscimos. Embora já seja uma prática consolidada, a adesão de produtores parceiros ainda precisa de critérios mais bem definidos por parte da Rede.

Em agosto houve a organização e inauguração do Banco de Sementes Crioulas, na Horta Camará, e a definição de regras de uso conforme o “Manual do Banco de Sementes”.

Até dezembro de 2019, foram realizadas oito feiras semanais, hoje elas acontecem aos domingos, a partir das 9 horas. As colheitas solidárias das hortaliças antes das feiras, inicialmente na MeliHorta, são realizadas com apoio solidário de integrantes da Rede, normalmente a partir das 7 horas. Em média 13 membros da Rede participam em cada feira, praticamente distribuídos por igual entre clientes solidários – alguns com crianças – e hortelãos/loas. No entanto, há significante flutuação, com presença entre 7 e 21 participantes por feira. No total, o número de participantes multiplicado por feiras realizadas chegou a 104, sendo que as feiras proporcionam ao mesmo tempo, além da venda de mercadorias, encontros com conversas sobre a Rede e o momento político.

Em relação aos alimentos, passaram do total de 81,4 kg de alimentos aos consumidores, sem contar com produtos vendidos por unidade (560 unidades no total). Por peso são vendidos batata doce, berinjela, macaxeira, cara, feijão guandu, tomate, mamão, além de goma de tapioca. As vendas por unidades abrangem as folhas de alfaces, alho poro, almeirão, bertalha, coentro, jambú, hortelã, manjericão, manjericão miúda, mostarda, rúcula; os frutos, tubérculos e legumes são abobora goianinha, cebola, cebolinha, cenoura, jerimum em fatias de 300g, pimentão, quiabo, milho branco crioulo, banana prata, banana comprida, além de molhos de pimenta e pimenta calabresa.

A produção distribuída se divide basicamente entre algumas hortas da Rede, a MeliHorta – 30 kg, 395 unidades, a Horta Camará – 3 kg, 28 unidades e a agricultora parceira – 48,5 kg, 137 unidades. No total, uma variedade de 32 itens.

Entre os meses de março e outubro deste ano, o aplicativo da feira totalizou algumas informações, como a venda total em peso de aproximadamente 1,2 toneladas de alimentos, ou 160 kg por mês. A venda total por valor em aproximadamente R$12.000,00, ou R$1.600,00 por mês, sendo que a maior produção é a de Jaqueline, com 78% da produção processada pelo aplicativo. Há que considerar que nem todos os produtos passam pelo aplicativo. A venda dos cogumelos não é registrada na feira, além de muitas compras diretas na feira pelos membros da Rede, também não são registradas no aplicativo.

Quais são as principais atribuições ou ações da RHBC desde a sua formação? Na sua visão, onde está a incidência maior da RHBC?

Thilo: Quanto às atribuições diria que o envolvimento local de pessoas com produção orgânica de alimentos, de forma direta pelo plantio, cultivo e ações em grupo, e de forma indireta pelo consumo consciente, responsável e solidário. Em relação às ações, inicialmente tivemos uma série de ações conjuntas, como mutirões de cultivo nos nossos terrenos, reuniões e oficinas, apresentação da Rede no congresso da Associação Brasileira de Saúde Comunitária (Abrasco), organização semanal da feira. Mas, desde a crise do Coronavirus houve uma diminuição drástica de ações presenciais, mantendo uma agenda mínima virtual, a feira e a divulgação do nosso boletim informativo. Recentemente, realizamos a produção de um programa de rádio a ser veiculado pela Rádio Universitária Paulo Freire. A incidência maior da Rede está na divulgação da Economia do Bem Comum através da produção e circulação de alimentos agroecológicos de forma colaborativa.

  Mutirão da Rede de Hortas do Bem Comum. Foto: Arquivo RHBC.

Pensando em um planejamento de curto e médio prazo, quais são os principais objetivos da RHBC?

Thilo: A curto prazo, consolidar a Rede e aumentar o conhecimento sobre a Economia do Bem Comum entre os membros da Rede, com possibilidade de se integrar no Núcleo Recife da EBC. A médio prazo, aumentar a variedade de produtos, o número de produtores da agricultura familiar, produtores do nosso meio urbano e de consumidores solidários. Institucionalizar a Rede. Cooperar com outros grupos e movimentos amigos.

Na sua avaliação, quais são as principais potencialidades e as principais limitações da RHBC?

Thilo: Quanto às potencialidades, me parece que as pessoas percebem cada vez mais que as pressões ambientais, econômicas e sociais estão aumentando. Uma parte destas pessoas percebe ainda, que a resposta não pode ser aumentar os muros – aqui em Aldeia, no sentido literal. Observamos cada vez mais movimentos e iniciativas, utilizando também as redes sociais e os meios de propaganda, que dão voz a esta preocupação, mas pouca solução estrutural. A EBC nos aponta um potencial de analisar, entender e responder de forma construtiva à raiz destes problemas. A Rede concentra respostas parciais ao nível local.

Em relação às limitações, existem duas limitações principais. Uma é o envolvimento de granjeiros de Aldeia com potenciais espaços de cultivo orgânico para distribuição em uma rede solidária e comunitária, sem esperar grandes retornos financeiros, mas ganhando amizades e diversidade de alimentos saudáveis na mesa. Este envolvimento não se realizou na escala sonhada. Mas desde o início, enxergamos a Rede também como um experimento social, ao nível local. Outra limitação é a disponibilidade de pessoas e “mão de obra” que se envolvem de forma voluntaria na construção e manutenção da Rede, adicional aos seus demais compromissos diários, totalmente absorvidos na sua rotina. Sair da gaiola é um desafio para cada um de nós.

Quais foram os principais avanços e as principais conquistas alcançadas?

Thilo: Principais avanços, ter consolidado um núcleo de membros e amigos ativos da Rede, crescimento contínuo do número de membros consumidores solidários. Ter a feira como rotina semanal, com pedidos por aplicativo próprio, desenvolvido de forma solidária por um membro ativo da Rede. Finalmente, os acordos formalizados em oficinas e reuniões que definem os nossos princípios básicos, valores e as formas de produção, produtos e serviços da Rede.

Principais conquistas, a integração da produtora parceira Jaqueline na feira da Rede, agricultora familiar dentro do nosso raio definido como produção local (até 50 km), com produção orgânica certificada, e os produtores de cogumelos. A aprovação do programa de rádio “Comunidades do Bem Comum” no recente edital da Rádio Universitária Paulo Freire e a nossa contribuição no congresso da Abrasco em 2019 também podem ser vistos como conquistas, embora sejam “efeitos colaterais” de divulgação, não fazendo parte dos nossos principais objetivos. Outras conquistas mais diretamente ligadas à atuação da Rede são o financiamento solidário através de “vaquinha” de uma barraca para Jaqueline e um abaixo assinado para funcionamento da barraca durante o lockdown, com rígido controle sanitário.

Quais os próximos passos da RHBC?

Thilo: Além de continuar com a organização da feira, queremos institucionalizar a Rede, com definição participativa do estatuto. Integrar mais os membros consumidores na organização e manutenção da Rede, no envolvimento nos grupos de trabalho, sempre lembrando a nossa base de valores. Aproximar membros interessados da Rede ao Núcleo Recife da EBC.

Como a Rede se torna e pode se tornar cada vez mais difusora da Economia do Bem Comum?

Thilo: Com a criação do Núcleo Local Recife e sua formalização junto ao movimento internacional da EBC, constrói-se uma ponte direta entre a Rede e a EBC. O Núcleo Recife e os seus membros participam ativamente na difusão da EBC na América Latina junto aos ativistas em outros países da região. Este trabalho inclui a criação de uma identidade própria, adequada ao nosso contexto cultural – “EBC com a cara da América Latina”. Desta forma, a Rede pode ser vista como o braço prático da EBC, e o núcleo como a entidade institucional junto ao movimento internacional da EBC, sem confundir as suas identidades e suas distintas atribuições.

Como você imagina a RHBC daqui a dez anos?

Thilo: Em tempos de avanço da digitalização colocada para a população mundial, rumo à continuação acelerada da substituição dos estados por interesses particulares sem legitimação democrática, do padrão de comunicação 5G, indústria 4.0, microtargeting e internet das coisas, prognósticos seriam pretensiosos. Acho que neste cenário é importante manter e criar grupos locais que atuem na esfera prática das nossas vidas. Com um olhar comunitário, para além do próprio umbigo, que se apoiam mutuamente, com cooperação e solidariedade. A conexão em redes é fundamental. Para fechar com um olhar otimista, vejo a Rede sendo parte ativa neste contexto, com as nossas moedas sociais e soberania sobre produtos e serviços, úteis e suficientes para as sociedades atuais e futuras.

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