Entrevista com Alexandre Pires (ASA /Centro Sabiá)
O biólogo Alexandre Henrique Pires, especialista em Extensão Rural e Desenvolvimento Local, coordenador geral do Centro Sabiá e coordenador executivo da ASA Pernambuco e ASA Brasil nos dá um panorama dos impactos da pandemia e do governo Bolsonaro na agricultura familiar e aponta os principais desafios.
Quais os principais impactos do governo Bolsonaro sobre as políticas públicas de apoio à agricultura familiar?
Os principais impactos residem numa estratégia deliberada de falta de interesse por parte do governo na implementação das políticas da agricultura familiar. Uma das estratégias montadas pelo governo se apoia em dois pilares: a desestruturação dos sistemas de participação social e dos instrumentos de gestão da política pública, ainda no governo Temer tivemos o fim do MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário e no governo Bolsonaro ocorre a desestruturação do Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), e as estruturas da política para a agricultura familiar completamente dissolvidas dentro do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento – MAPA, que sempre foi um ministério voltado para as políticas do agronegócio. O segundo pilar é a redução ou quase extinção dos orçamentos voltados para a agricultura familiar. O programa de cisternas que é um programa estratégico, sobretudo no contexto da pandemia onde a água é um elemento fundamental para a higiene da população, para evitar a contaminação, praticamente não foi investido nenhum recurso. No ano de 2020 a ASA (AP1MC) gestora do programa de cisternas não implementou nenhuma tecnologia e começa 2021 sem a perspectiva de implementação. A gente tem perdas de recursos do Plano Safra da Agricultura Familiar que desde a época do presidente Lula lançava os recursos de investimento para o período das safras, normalmente entre os meses de maio e junho para o ciclo agrícola. De 2003 em diante até 2016, a gente teve a destinação contínua de recursos voltados para a agricultura familiar, porém o Plano Safra lançado em 2020 pelo MAPA praticamente extingue os investimentos na agricultura familiar. Além disso, tivemos a redução dos recursos de investimentos no próprio Pronaf e no Programa de Aquisição de Alimentos voltado para a compra de alimentos da agricultura familiar para a doação à população em situação de insegurança alimentar, uma política que foi criada como estratégia de fortalecimento da agricultura familiar e construção de mercados, ou seja, uma série de perdas de recursos neste governo que antes eram destinados a agricultura familiar.
Como fica a produção orgânica e agroecológica? E as feiras agroecológicas, o mercado de orgânicos e a certificação?
A política nacional de agroecologia e produção orgânica foi criada pela presidenta Dilma em 2012 como uma demanda da Marcha das Margaridas, movimento de mulheres camponesas organizado pela Contag e vários outros movimentos sociais. A marcha que aconteceu em 2011 pautou o governo Dilma sobre a necessidade de criação dessa política. A partir de 2013 com a criação da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e a Comissão Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (CIAPO) a gente foi construindo até 2017 uma série de iniciativas em diálogo com o governo, para a promoção da agroecologia e produção orgânica e a certificação participativa em todo o Brasil. Conseguimos avançar com programas de sementes, como é o caso do Programa de Sementes do Semiárido que contribuiu para a implantação de mais de 1000 casas comunitárias de sementes, com a criação e estímulo aos núcleos de agroecologia nas universidades, institutos federais, nos órgãos de pesquisa do estado brasileiro como a Embrapa, as Emater, no caso de Pernambuco o IPA. Avançamos no tema da agroecologia com a criação de mecanismos e de abordagem para o ensino e o trabalho de extensão rural em agroecologia, foram criadas orientações, processos de formação para que os extensionistas, os técnicos que vão a campo assessorar famílias de agricultores pudessem trabalhar na perspectiva da abordagem agroecológica e também na implementação de uma assistência técnica e extensão rural voltadas para a abordagem da agroecologia. A gente tem uma perda que é a extinção da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e da comissão interministerial, além da completa desestruturação do que havia dentro do Ministério do Desenvolvimento Agrário voltado para a agroecologia, ou seja, a Coordenação Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica com suas diretorias, com quadros técnicos que atendiam a agenda da agroecologia, que desaparece em 2019 com o decreto do governo Bolsonaro. As feiras agroecológicas acontecem muito mais por uma iniciativa da sociedade civil e dos agricultores e agricultoras organizados que se articulam para a produção das feiras. Nós tínhamos uma perspectiva de avanço em uma política nacional através do estímulo a criação de mais feiras, com recursos que pudessem contribuir com o acesso da população urbana a alimentos mais saudáveis, agroecológicos e orgânicos. Hoje elas sobrevivem graças a ação das ONGs, dos movimentos sociais que buscam o financiamento com outros organismos de cooperação ao desenvolvimento ou de financiamentos coletivos para a sua continuidade.
Considerando a importância da agricultura familiar em Pernambuco em relação ao emprego e renda, e na produção de alimentos, que cenário podemos vislumbrar até 2022?
Diante de um contexto de desestruturação dos mecanismos de participação social e investimentos do estado brasileiro para a agricultura familiar, Pernambuco sofre igual aos outros estados da federação. Obviamente, que o fato de ter um território em que estão presentes dois biomas importantes, como é o caso da Mata Atlântica com um grande potencial de produção de alimentos e muito próximo aos grandes centros urbanos do estado, e a região semiárida na caatinga, um bioma sensível e de muita importância. Existe um processo muito grave de empobrecimento da população e isso tem afetado a população camponesa, porque as políticas voltadas para a agricultura familiar nos últimos anos contribuíram para ampliar os mercados dessa agricultura, mas de 2017 para cá ocorre uma desconstrução desses mecanismos. A gente volta a uma situação que talvez não seja a mesma das décadas de 80-90, mas com um mesmo grau de empobrecimento da população urbana periférica e também da população rural. Todos os dados, seja da FAO ou de qualquer pesquisador que identifique onde estão as situações de extrema pobreza, elas se concentram principalmente nas periferias das áreas urbanas e na zona rural. Acredito que vamos passar por uma situação bastante grave em 2021, resultado da crise econômica que a gente vive no Brasil nos últimos quatro anos, mas também agravada em função da pandemia. A tendência é que haja um aumento significativo do desemprego, do empobrecimento, da extrema pobreza como consequência dessa crise da pandemia, da ausência do estado no sentido de cobrir as necessidades da população. A ausência dos mercados para a agricultura familiar causa a descapitalização e sem esse capital os agricultores não conseguem garantir as condições necessárias para a produção. A questão da produção de alimentos poderia ser tratada pelos governos, tanto do estado quanto pelo governo federal e pelas prefeituras, como uma grande oportunidade de financiamento, de garantir um processo de investimento na assistência técnica, na extensão rural e na produção de alimentos da população da camponesa para a sua sobrevivência e a capitalização desse setor, criando ao mesmo tempo mecanismos como o próprio programa de aquisição se alimentos para a compra dos alimentos da agricultura familiar e o fornecimento desses alimentos para a população em situação de extrema pobreza nos centros urbanos, que a cada dia tem aumentado e depende da ação e da atenção do estado. A produção de alimentos pela agricultura familiar tem um enorme potencial, precisamos apenas que os governos invistam e assegurem aos agricultores familiares a compra dessa produção. A gente teve uma redução significativa das cisternas de captação de água para a produção de alimentos. Só conseguimos avançar no Brasil com aproximadamente 200 mil tecnologias, em Pernambuco algo em torno de 40 mil famílias com cisternas de água para produção de alimentos, no entanto os agricultores teriam condições de produzir se houvesse por parte do governo a garantia da compra dos alimentos para o atendimento a população em situação de insegurança alimentar, que vive na periferia dos grandes centros. Os cenários são incertos, em Pernambuco temos uma mudança de gestão da Secretaria do Desenvolvimento Agrário, o que normalmente gera um processo de descontinuidade das políticas e isso acaba prejudicando a agricultura familiar.
Quais os grandes desafios para se conduzir os sistemas produtivos familiares no caminho do desenvolvimento rural sustentável?
O desafio é o investimento nos mecanismos de mercado, de transformação ou beneficiamento da produção da agricultura familiar e de acesso aos mercados pelos governos favorecendo a agricultura familiar. Ela é a grande responsável pela produção de alimentos saudáveis para a população brasileira. Lamentavelmente, os governos acabam atrelando seus mecanismos e suas formas de gestão as facilidades do mercado institucionalizado, privado. Em Pernambuco e vários outros estados no momento da pandemia os governos redirecionaram os recursos da merenda escolar para cartões, através dos quais as famílias de estudantes efetuavam compras nas redes de supermercados, ao invés de investirem na produção e na compra de alimentos saudáveis da agricultura familiar. Há certa miopia por parte dos governos em enxergar o potencial que a agricultura familiar tem como produtora de alimentos e geradora de economia para o estado brasileiro e sua população. Um dos desafios é que os governos enxerguem a agricultura familiar com outro olhar, o olhar do seu potencial, criando, apoiando e investindo na sua infraestrutura de transformação, beneficiamento e de mercados institucionais. O governo de Pernambuco compra alimentos para o sistema penitenciário, para as escolas, hospitais, para o atendimento da assistência social a famílias em situação de vulnerabilidade. A agricultura familiar no Estado de Pernambuco possui totais condições e por preços muito menores para atender a essa demanda do estado, o que seria algo inteligente por parte do governo no sentido de atender a dois grupos sociais, aqueles que produzem e aqueles que precisam dos alimentos, de forma muito mais estratégica e grandiosa. Outro desafio é uma rearticulação da sociedade civil no sentido de se reorganizar e se rearticular para pautar numa construção humanitária uma agenda não só para o governo do estado, mas para as prefeituras municipais que acabam de iniciar uma nova gestão e o governo federal, sobretudo via o parlamento. Como não temos espaços de diálogo com o governo Bolsonaro, precisamos reorientar o nosso foco político para o parlamento, como fez a ASA, no sentido de pautar nas esferas municipal, estadual e federal uma agenda positiva e inteligente de apoio a agricultura familiar para o próximo período. Já começamos um processo de reorganização e reorientação política para o próximo pleito eleitoral, então é muito importante que as organizações e movimentos sociais se fortaleçam e construam um ambiente favorável de diálogo e reconexão com os sujeitos políticos, com o povo, com os agricultores familiares, com suas organizações e movimentos sociais na perspectiva de se fortalecer para pensar como é que esse setor pode ser definidor dos resultados eleitorais que teremos em 2022. Por mais que a população em geral busque se afastar da política, é a política que faz nosso país rodar, sabemos que ela pode contribuir muito com a melhoria de vida da população. Nos últimos anos tivemos a formação e centenas e milhares de jovens em institutos e universidades federais, onde foram formados filhos de agricultores e agricultoras com um grande potencial de conhecimento acadêmico e a vivência concreta no campo, junto a seus pais em sua própria experiência de vida, o que pode se transformar em uma grande potencialidade a se vislumbrar num projeto para o desenvolvimento rural sustentável em nosso país.
Alexandre Pires foi entrevistado pelo jornalista Gerson Flávio, colaborador do Projeto AGREGA.